31 de mar. de 2014

Na mesa-de-cabeceira
Do lado esquerdo da cama
Escrito com uma letra garranchuda
A lápis de cor verde
Semi-interrompido na porção do meio
Porque a ponta do lápis se foi
Trocado para grafite
E depois para caneta
(Indecisos...)
Estava um bilhete
Totalmente amassado, com algumas versões
Alternativas
Povoando as colunas laterais
Como a entender que houve dúvida
Vacilação
Titubeio
Quanto à decisão final
O apartamento estava incólume
Qualquer transeunte que cogitasse
Entrar e bater um papo com os fantasmas
Veria que nem um fio de cabelo
Nem um fragmento de unha
Recém-cortada
Estava fora do lugar
Até os potes de iogurte
Acumulados na beira da pia
Para o despejo reciclável
Até a bucha velha e desgastada
Aparando pingos da torneira
Com defeito
Até a porta da varanda
Com a fechadura quebrada
E batendo ao vento
Até uma ou outra cueca
Faceira
Por cima do sofá
Ou pendurada há seculos
Detrás da porta do banheiro
Até a caixa de sucrilhos
Pendurada com ímã
Souvenir de turismo
Na porta da geladeira
Para guardar contas
Até a tomada da televisão
Tirada da parede
(Economistas...)
Até os sacos de roupa suja
Na terceira gaveta
Da cômoda gasta e torta
Até os potes de fumo
E os isqueiros sem fluido
Pra acender o fogão elétrico
Quebrado
Até as cartas de amor
E rascunhos diversos
Num recesso escuro
Do armário de madeira
Compensada
Até Jimi Hendrix
Tocando no laptop
Da mesa repleta de cinzas
De cigarro
Até as aranhas nos cantos
De parede
E o chuveiro elétrico
Sem água quente
Por falta de resistência
Até a bela vista da varanda
Dando parte pro rio
E parte pro mar
Até os calçados
Enfileirados ao lado do leito
E o rangido da cama
Velha
E repleta de histórias
Até as paredes
Que todos dizem ter ouvidos
E seus ouvidos
Repletos de histórias
(Escritores...)

A única coisa diferente
Extraordinária
Não usual
Era o bilhete
Na mesa-de-cabeceira

Dizia assim:
A mesa-de-cabeceira
Tem teu cheiro
Como o tem a cama
E o sofá
E minhas cuecas
Os potes de iogurte
Têm teu gosto
Assim como
Minha escova
As paredes cansaram
De ouvir-te reclamar
Da bucha
Da pia
Do fogão
E da porta da varanda
Meu quarto-sala
E meu banheiro
Têm teu riso
Tua gostosa gargalhada
Meu espelho, tua imagem
Tua silhueta
Teu nu
Escondidos na memória
Até as aranhas
No canto das paredes
Têm saudades tuas
(Românticos...)

Mas eu, amor
Não te tenho
Não te posso sentir
Olhar-te dormir
Em uma tarde quente
Ou te debruçar
Na varanda de porta quebrada
Só de calcinha
Conjeturando o mundo
Eu, coração
Não tenho tua pele
Nem pelo menos
Teu riso
Então
Dize-me
Império dos sentidos
Como faço eu
Para viver
Com tanta lembrança
Tanta história?
E o toque?
E o gosto?
E o cheiro da pele suada?
E o riso, a gargalhada?
E o olho? E o olhar?
E as batidas rápidas
Do coração?

Parto hoje, pois
Só a liberdade
Só o vento
Só o ar e o mar
Hão de suprir
A falta que fazes
E as saudades tuas

Tem arroz no forno
E suco na geladeira
Põe o calço na porta da varanda

Te amo,
Adeus.

(Realistas...)

21 de mar. de 2014

E assim se conta a história
De rios de ruidosas correntes
Laços de sangue e memória

Cheios de si, cheios de ouro
Esvaem-se, em dor, os praticantes
Da geografia, da solidão

Pão-que-o-diabo-amassou...
Uns o dizem

Castigo memorável!
Outros ribombam

Entre champanhe e cana dividido
Curandeiro e monstro, o venerado
Passa os dias como ermitão, esquecido
Pois quase nunca é tolerado

Se verdade nua e crua é rebatida
Pela delícia da mentira, a acarinhar
Em verdade mais verdadeira digo:

Delicia-te na mentira hoje, vem gozar
Pois o amanhã, o desconhecido, vem reinar

Se és de rugas preenchido, a pensar
Preocupa-te com o vestido, qual usar?
O passado é teu amigo, deixa estar

Mas se é na pele, por sorrir,
Que ostentas a marca, vai mostrar
De história és rico e cheio, bom lembrar
Deita a cabeça, à noite, e vai sonhar

Bons sonhos.