31 de jan. de 2009

O trem tinha acabado de chegar na estação, a cortina de vapor a segui-lo. Um rapaz esperava a chegada, braço cingindo a cintura da garota, cabelos pretos e soltos pouco abaixo dos ombros. O trem estacionou com estridor, as pessoas começaram a (des)embarcar. O rapaz envolveu as mãos da moça entre as suas, deu-lhe um beijo na face e subiu. O trem ia longe quando ela abriu as mãos, um bilhete branco escrito a tinta preta, letra feia, porém firme:

"Talvez eu nunca seja bonito o bastante, nem tão cavalheiro.
Talvez eu nunca tenha dinheiro pra comprar-te o bastante.
Não seja alto o bastante, forte o suficiente.
Não seja esperto,
Elegante
Ou tão bem relacionado.
Talvez eu te faça sofrer de vez em quando, chorar...
Pode ser que eu esteja ausente algumas vezes (não por querer).
Mas de uma coisa tenho certeza: sempre há espaço em mim para um pouco mais de ti.
E o que sinto também nunca será o bastante, ou suficiente.
Portanto não chores, nem temas a minha ida;
Sei que parto hoje, mas em breve voltarei.

Guarda um pedaço do meu coração contigo.
Te amo."

Aquelas últimas palavras que não foram ditas encheram de cor a paisagem em preto-e-branco da despedida, e as lágrimas puderam dividir, com um sorriso, o rosto da moça (e do rapaz).

28 de jan. de 2009

Era escuro. Muito escuro. E frio. Espiou as mãos sujas, unhas malcortadas acumulando grude. Tinha tatuagens nos pulsos, uma cruz no esquerdo, um nome de mulher no direito. E feridas nos dedos, em todos eles. Marcas de faca, de mordidas, o dedo médio da mão direita estava marcado até o meio com sangue seco. As mãos atadas por uma fita plástica, resistente, havia marcas vermelhas em torno dela, já havia tentado soltá-la. Olhou ao redor. Concreto puro. Quatro paredes de concreto puro e uma porta grande de ferro, com um pequeno espaço por onde, diariamente, lhe empurravam aquela massa disforme que chamavam comida. Aquilo fedia. A roupa apertava. Cinza, tanto a camisa quanto as calças, apenas um número em vermelho na manga esquerda. Por baixo da roupa sentia as juntas doendo. Um dos tornozelos roxo e absurdamente inchado o impedia de andar. Pra que andar? O lugar onde estava tinha pouco mais de dois metros quadrados. Havia espaço apenas pra se mexer e não criar escaras, mas enfim, já tinha tantas feridas pelo corpo que não fazia a mínima diferença. Esquadrinhou as paredes, havia nomes, preces, recados diversos. Virou-se no chão, para o lado da parede em que tinha deixado sua marca também. Era um desenho tosco do rosto de uma mulher, feito com o sangue dos dedos. Aquele desenho tinha sido sua constante, algo que o deixava absorto, longe da realidade bruta que o levava à loucura. E foi olhando para o desenho que ele buscou a lâmina caseira, feita com o cabo da colher do almoço. As lágrimas escorriam na face. Fitou o nome no pulso direito. Sorriu pela última vez e beijou a parede no local marcado a sangue, posicionou a ponta contra o pescoço e abriu um talho que não teria feito no pior inimigo. Só largou o objeto quando sentiu o sangue esquentando as mãos, fazendo poças no chão, espirrando na parede, cobrindo as preces. Teve tempo ainda de beijar a cruz no pulso esquerdo, antes que perdesse a consciência. E agora era tudo escuro, mais escuro que aquele buraco em que o haviam enfiado. Não sentia mais o cheiro do sangue, não sentia mais dor, não sentia mais medo. Sentia apenas a liberdade que lhe tiraram.

E se foi.
A melhor companhia de um homem solitário, além da bebida, são as letras.

27 de jan. de 2009

Hoje eu cuspi no prato em que outrora me alimentei fartamente.
Sigo com o fantasma da vergonha a me devorar os sonhos.






(...que seja rápida esta noite)

26 de jan. de 2009

Espera, fica mais um pouco...

Não sabes que eu não pisco porque meus olhos querem decorar teu rosto?
Minha mão se nega a descansar, minha pele quer decorar a tua.
Não falo porque quero te ouvir, decorar tua voz.

...agora vai. Logo terei que ensinar meu corpo a te esquecer.
E no auge da minha insegurança meus olhos abriram.
Peguei o telefone no criado-mudo e disquei, inconscientemente.

-Cadê você? Tô com saudade, quero um abraço.
-Tô aqui, do teu lado.

Virei, era verdade.
Ela estava ali, com os mesmos olhos de sempre a me fitar.

25 de jan. de 2009

Te dou minha palavra, mulher, eu te amo
Infelizmente essa é a melhor garantia que posso te dar

Agora olha nos meus olhos e acredita
Salva-me de mim mesmo, eu te peço
Por favor, dá-me tua mão
E não me deixes afogar nas minhas próprias lágrimas

(Não permitas que eu deixe escapar por entre os dedos a felicidade que apertei tão firmemente contra o peito)


- Quando io guardo allo specchio, vedo te, capiche?

24 de jan. de 2009

Entrei no banheiro de azulejos _ _ _ _ _ _ _ e gastos, mostrando o reboco na parede.
_ _ _ _ _ _ dos olhos que fechei e rodei pra trás, tentando espiar o interior do crânio, e lá estavam elas, ainda vivas, memórias da noite anterior, pululando na substância _ _ _ _ _ _ _ _ do meu cérebro.
O mesmo _ _ _ _ _ das piolas de cigarro que agora mancham a cor do meu sofá _ _ _ _.
_ _ _ _ da calcinha esporrada jogada sobre o velho carpete _ _ _ _ _ _.
Mesmo _ _ _ _ _ _ da merda boiando no vaso do banheiro de azulejos _ _ _ _ _ _ _.

Cores que eu não sei o nome.
Cores de Almodóvar.
Cores de Frida Kahlo.

Acho que bebi demais.

23 de jan. de 2009

Guardo ainda na face a marca em alto relevo das unhas de Ivete, daquele dia em que a humilhei e, depois, com desprezo, dei-lhe meu dinheiro suado de estivador no cais. Lembro-me como se fosse ontem, a cólera a colorir sua face de vermelho-tomate, a mesma cor do esmalte barato que descascava nos fâneros em seus dedos calejados de tanta punheta. Sabe-se lá quantos outros estivadores como eu desbravaram o refúgio nas entrecoxas quentes da nêga Ivete. "Era mulher de muitos" como ela mesma me dizia. Negou minha proposta de amancebar-se comigo no casebrezinho de madeira à beira-mar. Cozinharia pra mim, daria-me filhos fortes, deixaria o bordel. Mesmo depois de jurar meu afeto por ela, negou-se a vir comigo. Ofendi-a, então, não sei por que motivo, Ivete nunca me tratara mal, pelo contrário. Gritar "puta" não era ofensa no caso dela. Envergonho-me até hoje do que disse aquela noite, estimava muito aquela mulher: corpulenta, pernas torneadas, muitos anos de bordel e ainda conservava o charme que deixava homens de quatro por ela, ainda que os anos não tivessem sido generosos com seu rosto. E mais, dizia-me sempre a verdade, remediava meus problemas, nem sempre com sexo, se bem que pode-se dizer que este último quesito era sua especialidade. O pesar que sinto hoje por tê-la perdido é ainda maior que a dor excruciante que senti na hora. O sangue quente da minha cara coloriu de novo as unhas gastas e manchou o vestido de chita surrado. Jogou sobre mim o dinhero que dei, e ficou ali, na soleira a apontar, com os dedos ainda sujos de porra, a saída.

Nunca mais vi Ivete. Minha vida nunca mais foi a mesma.

22 de jan. de 2009

Tenho medo quando me olhas assim, com esse teu olhar de raios-x, a perscrutar todo o meu interior, analisando tudo de podre e ruim que tenho, entras através da minha retina e vês inclusive meu medo, percebes meu suor frio a empapuçar as mãos e plantas dos pés, meu coração ritmo-de-metralhadora, e então, quando penso que tudo está perdido, do mesmo modo com que me causas medo, esboças um sorriso, teus olhos estreitando, tuas mãos a espiar meu corpo no toque, e é aí que sugas tudo num beijo e me tranformas no que queres, naquilo que sou.

Agora não tenho mais medo, isso é fato.

20 de jan. de 2009

Verão... céu, sol, sal e mar, ah! mar, quero amar de novo ao alcance desse teu hálito de sal, saudade desse verão tão quente, tão magnifíco, tão louco, tão rápido... dessa sensação infinita de liberdade que é molhar os pés na água de manhã, sorrisos na areia, areia nos poros e os poros em êxtase, felicidade brotando nos rostos com um gole de cerveja, alegria brotando nos corpos com um mergulho, bebida brotando nos copos e mais sorrisos, pessoas brotando do nada, jogos, gritos, violões, batuques, piadas, conversas sem sentido na madrugada, mais música, mais alegria, mais sorrisos, mais amigos, mais amor, mais tesão... ah, verão...

...mais saudade.

3 de jan. de 2009

... e me sinto só em meio à multidão.