29 de ago. de 2019

A mente molda o corpo. A boca lhe dá alimento.
O corpo, por sua vez, faz e sente, devolvendo à mente histórias da realidade em que vive, nutrindo a mente de idéias.
Corpo e mente são cara e coroa da mesma moeda.

Aquele que faz fortalece o corpo, quase sempre ignorando a mente.
Quem pensa desenvolve a mente, geralmente relegando o corpo à intempérie mundana.
Ambos tolos, esquecem a dualidade corpo-mente e arremessam a moeda com fé ritualística.

A sapiência é virtude rara, e não a proclamo em mim.

Em verdade, a maior parte dos viventes constrói a mente em torno de uma idéia, um pilar central que molda sua estrutura e direciona os atos do corpo, tateando o mundo material à procura de seus objetivos.
Uma lâmina pode rasgar a carne e derramar sangue e entranhas, destituindo a mente do seu tutor no mar de incertezas da matéria.
Uma palavra, ou um ato, porém, são armas mais perigosas, penetrando com igual facilidade carne e idéia, removendo, com destreza, o construto que sustenta a abóbada mental. A espinha da mente, conquanto altamente estruturante de um indivíduo, é igualmente frágil e vulnerável.

A luz que um ser encontra em sua idéia central o guia em sua trajetória escura.
Um cego tateia na escuridão e, não raro, consegue enxergar com os dedos, mantendo seu caminho, sua direção.
A mente sem seu arcabouço, entretanto, é um barco à deriva, impulsionado por ventos que ignoram sua vontade. Uma mente sem rumo é um espadachim sem a mão da lâmina.

Palavras são cartas ao vento.
Não irei aqui soprar de meus lábios que já não tenho olhos para ver. Mas a luz, que uma vez neles brilhou forte, se apagou quase à extinção, porque quis crer, com todas minhas forças, que meu centro, minha arquitetura, não estava em mim, mas na alteridade.

Qual terremoto, talvez previsível, mas igualmente desastroso, a verdade me acertou na cara como uma tapa, embora indolor; a dor real me atingiu no cerne, desfazendo, quase por completo, os quartos e seus segredos, a máquina e suas engrenagens, que movem, como fios de uma marionete, esses dedos que digitam.
O grito da carne é o lamento da alma.

Porque eu vi a luz em seus olhos, qual farol a me guiar, hoje meu corpo se sustenta sobre meus pés, mas minha mente caminha sobre o fio de uma navalha torta, o gume esguio de uma lâmina empunhada, sabe-se lá como, por um maneta.

Hoje navego uma galé em águas escuras, mas não tenho braços para todos os remos, e não há luz no horizonte.
Faltam mastro e vela, casco e convés; e a tripulação etérea, mil reflexos de mim, observa, calada e perplexa, enquanto seu capitão afunda lenta e lealmente com a nau, desejoso que o antecipado fim, fundo frio, seja apenas novo abraço, novo ventre, novo começo.

Nova luz.



"Then you gazed up at me and the answer was plain to see
'Cause I saw the light in your eyes"

Todd Rundgren - I saw the light
(clique no texto em negrito para redirecionar para a página com a música)


"It was one thing to slay a lion, another to hack his paw off and leave him broken and bewildered."

Brienne of Tarth, em A Feast for Crows (Livro IV) - A Song of Ice and Fire, de George R. R. Martin.
(clique no texto em negrito para seguir o link com mais informações)

11 de abr. de 2019

"A lei da mente é implacável. / O que você pensa, você cria; / O que você sente, você atrai; / O que você acredita / Torna-se realidade"

Trecho creditado a Siddhārtha Gautama, ou Buda, O Iluminado (clique no nome em negrito para abrir um link).


O mundo é mental e energético. O que hoje estudamos extensivamente, os segredos do cosmos e do DNA, ou trocando em miúdos imensos, informação, existe(m), neste único planeta que conhecemos, desde que amebas sonharam tornar-se seres multicelulares. O desenho esquemático que fez teu rosto tomar a forma que observas no espelho vem se multiplicando e transformando muito antes dos teus sonhos guiarem teus dias. Essa é uma força poderosa. Uns chamaram de deus e puseram caixa alta no D pra que tu e teus pares se sentissem inferiores, distantes e alheios a essa estupefaciante verdade que permeia a todos nós. Outros, declarando a morte desse deus, chamaram ciência e, novamente, com o [não-único] objetivo de afastar as massas da realidade, criaram lugares onde poucos têm a chance de vislumbrar uma fração ínfima desse segredo. Mesmo os que chegam a olhar rapidamente para essa força primordial sentem-se intimidados pelo poder que ela emana e muitos são dissuadidos de continuar olhando, distraídos que estão (e com razão) pelas vicissitudes da existência. Só aquele(a) que afasta a necessidade de contemplar a criação, ou o Big Bang, ou o que queira chamar, e olha para dentro, aniquilando seu próprio deus (Freud chamou de 'ego'), é capaz de perceber a energia pulsante e destrutiva/reestruturante que toda mente gera, qual usina celestial. É necessário um fim antes de um começo, como uma supernova que colapsa sobre si mesma criando a pupila escura que convencionamos chamar buraco negro, encapsulada em um anel de luz brihante, e que leva, inescapavelmente, a informação que falei acima desta para uma outra realidade/dimensão que ainda desconhecemos; e cada dia que fechamos os olhos, cada pedaço ultramilesimal da clausura material que chamamos "eu" se refaz, apenas para abrir os mesmos (outros) olhos, carreando consigo o novo.


"Todos os dias nascem deuses / Alguns maiores e outros menores do que você / (...) Esse é o alvorecer de tudo que se quer ver / Sem fazer sombra na melhor hora do sol / Eternidade duradoura com sossego então / Melhor que fique assim"

Nação Zumbi - "No Olimpo" - Fome de Tudo (2007) (clique no nome em negrito para abrir outra página com a música)


"É você / Que ama o passado / E que não vê / Que o novo sempre vem"

Belchior - "Como Nossos Pais" - Alucinação (1976) (clique no nome em negrito para abrir outra página com a música)








(os créditos dessa imagem são do projeto colaborativo Event Horizon Telescope. Para saber mais, acesse: https://eventhorizontelescope.org/)

22 de jan. de 2019

A arte secreta de dividir o indivisível. De ser não-sendo.
Eu gostaria de ser menos complicado, mas aí seria menos eu.
Talvez a real arte seja a de admitir a difícil complexidade, a grande bagunça cósmica que separa o abrir do fechar de olhos, o yin do yang.
Mais fácil amalgAMAR-se quando tudo em si é líquido e mutável.



(grato, aaluah, pelo vampirismo noturno).
Estranho
Olhar para trás e
tentar juntar o passado feito quebra-cabeça
Sempre falta um pedaço

No pretérito-presente
Enclausuro-me
À espera de um sinal
De fumaça
Ou fogo que me consuma

Antes tarde do que nunca
Dizem

Digo mais
Eu não me sinto
Nem sou o mesmo

Mas meus dedos, sem dúvida,
Reconhecem a memória

Olhar no abismo, no breu,
Como disse uma vez Nietzsche,
É certificar-se do olhar-espelho

Quem mais te julga, senão você?

Já pesa mais meu corpo
que minha mente
Que ainda mente
Finalmente
Mente

Talvez viver seja só isso:
Uma grande mentira
Que só faz sentido
Quando se esquece
Quando nem os dedos sabem de cor
O caminho de casa.