21 de set. de 2009

A neblina nem tinha assentado ainda quando eu saí. As pupilas boiando na piscina dos olhos. O que fazer quando se esquece o caminho de volta? Quando a placa de vire à esquerda na verdade te presenteia uma curva fechada à direita? Você capota e come terra. O que fazer quando as pedras que rolaram do terremoto da véspera te soterram? Você vira bosta. Você está sozinho no meio da pista, zumbido filha da puta no ouvido, tua perna esquerna esmagada. Tudo que você consegue ouvir é uma voz fraca vindo do som do carro destruído no acostamento. Maria Rita canta que o amor só é bom quando é pra dois, eterno, antes e depois, competindo com o chiado das tuas vísceras fritando no asfalto quente. Meu samba vai curar teu abandono, ela diz. Não quer ver você tão triste. Vai curar a dor que existe. Teus intestinos respondem no chiado. Aí você lembra da dor. Manca mais uns duzentos metros no acostamento, deixando pra trás migalhas da tua alma. Você não chora. Você é forte. Levanta a face, enxerga o recortado das montanhas no horizonte. Parece uma mulher deitada. Rosa, ah menina Rosa, vem que eu quero ver você sambar. Me disseram que você samba demais, Rosa. Que mal há em sambar? Meu samba tem mistério, mas é gostoso de sambar. Então a vista escurece um pouco mais e você torna. Porra, o carro é um monte de ferro retorcido. Não, eu sou forte. Mas não tem como eu ter saído inteiro dessa merda. O samba meio que brotando da lata de sardinha que o carro virou. Você cansa, os músculos ardem. Teus pedaços estão espalhados no chão. Não há mais migalhas de tua alma pra te manter vivo. É aí que você chora. Sozinho, nu no escuro, sangra profusamente por buracos que você nao consegue enxergar. Tua cara no chão, coração batendo no ritmo do teu lado só pra te lembrar que você ainda tá vivo. Que aquela porra tá doendo de verdade, e que não vai passar tão cedo. É quando você fica puto. Levanta. É a tua voz te chamando. Você tá uma merda, sabia? Aí você pega o teu coração e põe numa porra de um saquinho pra vômito. As pessoas se assustam quando vêem aquele monte de entulho sendo conduzido por um cara magro, feio e coberto de sangue, carregando o coração num saco. Um posto. Pede um litro de cachaça. Três goles e metade da garrafa se foi. Lava a alma com o resto da cachaça ou a cachaça com o resto de alma? Não sei. Você ri. O sangue coagulado entremeado nos dentes. O dono da loja de conveniência ri. Que porra. Quer o quê mais filho? Manda esse coração pra dona dele. Não serve em mim. Bate forte demais. Você acorda. Porra de sono. O cheiro das paredes do hospital banhadas com desinfetante. Moço, moço, pra que lado é a ala de pediatria? Você estende o braço e abre a boca, mas não tem voz nos teus pulmões. Aliás, você não tem pulmões. Moço?! Teus pedaços ainda estão espalhados no chão... Ah, mal educado do caralho! Deixa a pessoa falando sozinha! ...Mas só você vê.

Um comentário:

Érica disse...

uma cachaça pra lavar.
esse é um dos mais fodas!

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